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on 20 março 2016

PROSA - Cenas do Cotidiano

CENAS DO COTIDIANO
Sou um homem de andares. Uso o máximo possível o transporte público, mas essa não é uma leitura sobre a qualidade (?), pontualidade (?) ou preço deste (des) serviço público.
Falo dos ganhos com o ouvir e o ver. Porto Alegre está ali, ao alcance da vista, com suas cores, cheiros, luzes e sombras. A pressa e o distanciamento que damos ao mundo real nos priva de belezas e ensinamentos vitais. Só vendo e ouvindo podemos ter empatia com o próximo, com as necessidades e com a realidade nua e crua.
O que já vi e ouvi dentro de coletivos é um mosaico da fauna que habita a capital dos gaúchos.
Esta semana peguei um ônibus no terminal camelódromo. Depois de ficar cerca de dez minutos esperando e observando os camelôs, famílias, trabalhadores, comuns, prostitutas e vadios, entrei no ônibus quase vazio e não tive dificuldade em escolher um assento à janela. A escolha é importante, porque sempre prefiro aquelas sem divisórias, que me permitam lançar o olhar à rua com o maior ângulo possível. Pareço um torcedor em uma partida de tênis. Olho lá, olho cá, ouço aqui e acolá. Mas, desta vez, foi diferente, porque no banco atrás do meu sentou uma figura que só lembro a voz e, pelo contado aqui, me entenderão porque fiz questão de não ver seu rosto.
Mal o ônibus se movimentou e ele fez uma ligação telefônica. Brigou com a ex-mulher, pediu para ela dizer aos filhos que os amava e que daria um jeito de vê-los no fim de semana. Normal, não?
Próxima ligação, para a mãe. O começo foi trivial, perguntando por sua saúde, o tio etc. Quando ele começou a responder é que meus sentidos aguçaram. Disse a ela que estava se virando, morava em um hotel onde pagava trinta reais a diária, mas tinha tv, banho quente e ele mesmo fazia a comida. Que tinha passado por maus momentos, mas como homem de fé, pediu a Deus e não é que meia hora depois “tudo brilhou” (sua expressão). Conseguiu oitenta reais com uma senhora e depois mais duzentos com outra. “Não, mãe, sem violência, na boa, elas nem viram”. Putz! Meu sentido de alerta acendeu e a curiosidade mais ainda. E prosseguiu. “Pra senhora ver como Deus tá comigo, hoje tô voltando pra casa cedo (eram cerca de duas e meia da tarde). com três celulares e duas digitais (câmeras) na mochila”.
Olhei discretamente em volta e ninguém movia um músculo. Todos seguiam com seus olhares distantes ou perdidos. Tenho certeza de que todos ouviam, porque o sujeito não tinha a menor vontade em ser discreto ou baixar o tom de voz.
E segue ele. “Encontrei o fulano e ele surtado, mãe. Depois da temporada no Central (presídio) ele tá sem paciência, grita com todo mundo e tá tri revoltado”. Fala a mãe e ele responde, “não, ele puxou mais tempo que eu, foi três anos e meio.” Volta a mãe e ele explica que “foi que nem eu, homicídio e furto”. Gelei. A mãe quer saber que número é aquele de onde ele liga e ele na bucha “não sei, esse celular é de boa. Nem sei se é de conta ou pré. Quando parar de falar, parou”.
Entendi. Alguém está pagando esta ligação e ainda não sabe.
Pergunta pela irmã, se tem aparecido. Pensei com meus botões, homem de família. Ledo engano.
Volta ele, “aquela vagabunda fica fazendo a cabeça dos meus filhos, e o marido dela fica só criticando meu modo de vida. Se junta com e o fulano (atual da ex) pra me azucriná. Disse que se ele continuar assim, vou matar os filhos dele com a fulana (ex do atual da ex dele) só pra ele sofrendo”.
A mãe deve conhecer bem o filho, porque não vejo sinal de protesto. Já se passaram mais de vinte minutos e estamos na metade do caminho. O restante do trajeto promete.
A mãe pede, e deduzo que já tentou outras vezes, que ele pense melhor na vida. Fico sabendo que tem trinta anos e está nessa desde os doze, dezoito anos de carreira. Já andou em coisa mais pesada, mas agora é só no centro e de dia. Está noutro nível.
E seguem as surpresas.
A mãe pergunta sobre o computador que ele deu à filha e ele responde que pegou de volta. “Ela não sabe ler ainda e o pessoal do GOE (polícia) ficou me alugando, dizendo que eu era trouxa em dar um notebook pra uma criança que não sabe ler, que a ex é que devia estar usando. Fui lá, peguei de volta e vou guardar até ela aprender a ler, afinal é um Sony Vaio, daqueles fininho”.
Pergunta se a mãe precisa de alguma coisa e depois de ouvir a resposta, diz. “Mãe, vou trabalhar mais esta semana e no domingo passo aí com os meninos e como sem grana, vou deixar umas digitais pra ti te virá”.
Deduzo que a mãe não quer e ele se irrita com a postura dela.
“Pô, mãe. Já vem com esses papos. Não gosto disso. Por isso que eu demoro pra ligá. Não tem essa, é assim e deu. Vou desligar. Tchau”.
Ele fica de pé, dá dois passos para lá, dois pra cá no corredor, parecendo impaciente. Duas ou três paradas depois, desce.
Até ele descer, nenhum pigarro, nenhum som, nenhuma tosse, nada. Somente sua voz ecoava dentro do ônibus. Pessoas entraram e saíram do ônibus e o silêncio só não era total pelo barulho do dia-a-dia da cidade. Sirenes, buzinas, freios e o burburinho das paradas.
Levantei e olhei em volta procurando alguma expressão nos rostos, mas a impassividade e a distância eram as mesmas.

Entendi que somos todos assim, nada mais nos assombra. Quarenta minutos depois, é vida que segue.