CENAS DO COTIDIANO
Sou um homem de andares. Uso o máximo possível o
transporte público, mas essa não é uma leitura sobre a qualidade (?),
pontualidade (?) ou preço deste (des) serviço público.
Falo dos ganhos com o ouvir e o ver. Porto Alegre
está ali, ao alcance da vista, com suas cores, cheiros, luzes e sombras. A
pressa e o distanciamento que damos ao mundo real nos priva de belezas e
ensinamentos vitais. Só vendo e ouvindo podemos ter empatia com o próximo, com
as necessidades e com a realidade nua e crua.
O que já vi e ouvi dentro de coletivos é um mosaico
da fauna que habita a capital dos gaúchos.
Esta semana peguei um ônibus no terminal
camelódromo. Depois de ficar cerca de dez minutos esperando e observando os
camelôs, famílias, trabalhadores, comuns, prostitutas e vadios, entrei no ônibus
quase vazio e não tive dificuldade em escolher um assento à janela. A escolha é
importante, porque sempre prefiro aquelas sem divisórias, que me permitam
lançar o olhar à rua com o maior ângulo possível. Pareço um torcedor em uma partida
de tênis. Olho lá, olho cá, ouço aqui e acolá. Mas, desta vez, foi diferente,
porque no banco atrás do meu sentou uma figura que só lembro a voz e, pelo contado
aqui, me entenderão porque fiz questão de não ver seu rosto.
Mal o ônibus se movimentou e ele fez uma ligação
telefônica. Brigou com a ex-mulher, pediu para ela dizer aos filhos que os
amava e que daria um jeito de vê-los no fim de semana. Normal, não?
Próxima ligação, para a mãe. O começo foi trivial, perguntando
por sua saúde, o tio etc. Quando ele começou a responder é que meus sentidos
aguçaram. Disse a ela que estava se virando, morava em um hotel onde pagava
trinta reais a diária, mas tinha tv, banho quente e ele mesmo fazia a comida.
Que tinha passado por maus momentos, mas como homem de fé, pediu a Deus e não é
que meia hora depois “tudo brilhou” (sua
expressão). Conseguiu oitenta reais com uma senhora e depois mais duzentos
com outra. “Não, mãe, sem violência, na boa, elas nem viram”. Putz! Meu sentido
de alerta acendeu e a curiosidade mais ainda. E prosseguiu. “Pra senhora ver como
Deus tá comigo, hoje tô voltando pra casa cedo (eram cerca de duas e meia da
tarde). Tô com três celulares e duas
digitais (câmeras) na mochila”.
Olhei discretamente em volta e ninguém movia um
músculo. Todos seguiam com seus olhares distantes ou perdidos. Tenho certeza de
que todos ouviam, porque o sujeito não tinha a menor vontade em ser discreto ou
baixar o tom de voz.
E segue ele. “Encontrei o fulano e ele tá surtado, mãe. Depois da temporada no
Central (presídio) ele tá sem paciência, grita com todo mundo e tá tri
revoltado”. Fala a mãe e ele responde, “não, ele puxou mais tempo que eu, foi três anos e meio.” Volta a mãe e ele
explica que “foi que nem eu, homicídio e furto”. Gelei. A mãe quer saber que
número é aquele de onde ele liga e ele na bucha “não sei, esse celular é de
boa. Nem sei se é de conta ou pré. Quando parar de falar, parou”.
Entendi. Alguém está pagando esta ligação e ainda
não sabe.
Pergunta pela irmã, se tem aparecido. Pensei com meus
botões, homem de família. Ledo engano.
Volta ele, “aquela vagabunda fica fazendo a cabeça
dos meus filhos, e o marido dela fica só criticando meu modo de vida. Se junta
com e o fulano (atual da ex) pra me azucriná.
Disse que se ele continuar assim, vou matar os filhos dele com a fulana (ex do
atual da ex dele) só pra vê ele
sofrendo”.
A mãe deve conhecer bem o filho, porque não vejo
sinal de protesto. Já se passaram mais de vinte minutos e estamos na metade do
caminho. O restante do trajeto promete.
A mãe pede, e deduzo que já tentou outras vezes, que
ele pense melhor na vida. Fico sabendo que tem trinta anos e está nessa desde
os doze, dezoito anos de carreira. Já andou em coisa mais pesada, mas agora é
só no centro e de dia. Está noutro nível.
E seguem as surpresas.
A mãe pergunta sobre o computador que ele deu à
filha e ele responde que pegou de volta. “Ela não sabe ler ainda e o pessoal do
GOE (polícia) ficou me alugando,
dizendo que eu era trouxa em dar um notebook pra uma criança que não sabe ler,
que a ex é que devia estar usando. Fui lá, peguei de volta e vou guardar até
ela aprender a ler, afinal é um Sony Vaio, daqueles
fininho”.
Pergunta se a mãe precisa de alguma coisa e depois
de ouvir a resposta, diz. “Mãe, vou trabalhar mais esta semana e no domingo
passo aí com os meninos e como tô sem
grana, vou deixar umas digitais pra ti te virá”.
Deduzo que a mãe não quer e ele se irrita com a
postura dela.
“Pô, mãe. Já vem com esses papos. Não gosto disso.
Por isso que eu demoro pra ligá. Não
tem essa, é assim e deu. Vou desligar. Tchau”.
Ele
fica de pé, dá dois passos para lá, dois pra cá no corredor, parecendo
impaciente. Duas ou três paradas depois, desce.
Até
ele descer, nenhum pigarro, nenhum som, nenhuma tosse, nada. Somente sua voz
ecoava dentro do ônibus. Pessoas entraram e saíram do ônibus e o silêncio só
não era total pelo barulho do dia-a-dia da cidade. Sirenes, buzinas, freios e o
burburinho das paradas.
Levantei
e olhei em volta procurando alguma expressão nos rostos, mas a impassividade e
a distância eram as mesmas.
Entendi
que somos todos assim, nada mais nos assombra. Quarenta minutos depois, é vida
que segue.
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