Cincopes

on 26 julho 2025

PROSA - FELIPE, A HISTÓRIA NÃO VIVIDA

Somos um povo sem memória que dá mais importância à herança que ao legado.

Enterramos nosso passado sem entender nossas origens, as lutas, conquistas e tropeços. Não sabemos e nem tentamos saber porque estamos aqui.

Isso me faz ter inveja e reverenciar a importância dada à ancestralidade nas culturas de matriz africana e indígenas, afinal eles estão nesta terra muito antes do que nós.

Devemos deixar registros em livros chamados filhos, desdobrados em capítulos conhecidos como netos. Muitos, em sua individualidade e onipotência imbecil, ao invés de um livro com começo, meio, final feliz e cenas da próxima temporada, legam uma folha de papel mal escrita.

A perda precoce de um filho é um livro que nunca será escrito.

Meu filho, Felipe, passou como um raio em nossa vida. Chegou, uniu e partiu.

Estaria completando hoje, 19 anos e, às vezes, me pego imaginando como seria.

Que traços teria de cada um de nós?

Teria a charmosa teimosia da mãe? Falaria tanto quanto eu?

Depois de pensar muito, ousei pedir pra IA criar sua imagem baseado em uma foto minha e da Ana. Criei uma imgem e agora me pergunto se seria melhor mantê-lo eternamente imaginário. Sigo sem resposta e sem arrependimento.

Com certeza seria bonito, inteligente e, certa e coordenadamente, em jogadas ensaiadas e deixas precisas, atucanaríamos sua mãe.

O que Felipe estaria fazendo? Já teria escolhido uma carreira? Qual esporte o encantaria?

Como seria sua convivência com irmãos tão mais velhos? Seria um cunhado pentelho?

Com qual das manas teria mais afinidade? Seguiria seu irmão?

E com os sobrinhos com quase a sua idade, seria parceiro nas aventuras ou o tio com bom senso?

A Ana aprovaria sua namorada?

Eu teria cometido os mesmos erros como pai? Teria aprendido algo?

Eu estaria melhor fisicamente, porque seria desafiado permanentemente. Seria companheiro, torcedor e competidor do Felipe. Superaríamos obstáculos e descobriríamos coisas juntos.

De uma geração mais inclusiva, diversa, humana e sensata, me ouviria mais do que seus irmãos?

Eu teria tanto pra contar, mostrar e conselhos e experiências vividas em minha longa vida.

Caminharíamos pelas ruas da cidade, na beira da praia ou por caminhos ingremes e tortuosos e eu contaria histórias da família, minhas travessuras e aventuras. Num dia de chuva, abriria o baú de fotos e faria um roteiro de cada uma ao som de músicas que fizeram a trilha de minha vida.

Ensinaria a ele sobre respeito, amor ao próximo, a desimportância da religião e a importância da fé, o valor da mão estendida, o desapego material, a ambição pela paz e a centralidade da família e do humanismo.

Mostraria que a vida é complexa, mas viver é simples. Alertaria que ela não é fácil, mas cada segundo vale a pena. Que uma vida ordinária pode ser extraordinária quando temos com quem compartilhar afetos, lágrimas e sorrisos.

Felipe é um livro incompleto. Pouquíssimas páginas escritas e inúmeras outras com rabiscos nebulosos que nunca tomarão forma.

Não é dor, nem saudade ou melancolia, é nostalgia de uma vida não vivida.

Sua vida toda está em meu coração.