Somos um povo sem memória que dá mais importância à herança que ao legado.
Enterramos nosso passado sem entender nossas origens, as lutas,
conquistas e tropeços. Não sabemos e nem tentamos saber porque estamos aqui.
Isso me faz ter inveja e reverenciar a importância dada à ancestralidade nas
culturas de matriz africana e indígenas, afinal eles estão nesta terra muito
antes do que nós.
Devemos deixar registros em livros chamados filhos, desdobrados em capítulos conhecidos como netos. Muitos, em sua individualidade e onipotência imbecil, ao invés de um livro com começo, meio, final feliz e cenas da próxima temporada, legam uma folha de papel mal escrita.
A perda precoce de um filho é um livro que nunca será escrito.
Meu filho, Felipe, passou como um raio em nossa vida. Chegou, uniu e
partiu.
Estaria completando hoje, 19 anos e, às vezes, me pego imaginando como
seria.
Que traços teria de cada um de nós?
Teria a charmosa teimosia da mãe? Falaria tanto quanto eu?
Depois de pensar muito, ousei pedir pra IA criar sua imagem baseado em
uma foto minha e da Ana. Criei uma imgem e agora me pergunto se seria melhor
mantê-lo eternamente imaginário. Sigo sem resposta e sem arrependimento.
Com certeza seria bonito, inteligente e, certa e coordenadamente, em
jogadas ensaiadas e deixas precisas, atucanaríamos sua mãe.
O que Felipe estaria fazendo? Já teria escolhido uma carreira? Qual
esporte o encantaria?
Como seria sua convivência com irmãos tão mais velhos? Seria um cunhado
pentelho?
Com qual das manas teria mais afinidade? Seguiria seu irmão?
E com os sobrinhos com quase a sua idade, seria parceiro nas aventuras ou
o tio com bom senso?
A Ana aprovaria sua namorada?
Eu teria cometido os mesmos erros como pai? Teria aprendido algo?
Eu estaria melhor fisicamente, porque seria desafiado permanentemente. Seria
companheiro, torcedor e competidor do Felipe. Superaríamos obstáculos e descobriríamos
coisas juntos.
De uma geração mais inclusiva, diversa, humana e sensata, me ouviria mais
do que seus irmãos?
Eu teria tanto pra contar, mostrar e conselhos e experiências vividas em
minha longa vida.
Caminharíamos pelas ruas da cidade, na beira da praia ou por caminhos
ingremes e tortuosos e eu contaria histórias da família, minhas travessuras e
aventuras. Num dia de chuva, abriria o baú de fotos e faria um roteiro de cada
uma ao som de músicas que fizeram a trilha de minha vida.
Ensinaria a ele sobre respeito, amor ao próximo, a desimportância da
religião e a importância da fé, o valor da mão estendida, o desapego material,
a ambição pela paz e a centralidade da família e do humanismo.
Mostraria que a vida é complexa, mas viver é simples. Alertaria que ela não
é fácil, mas cada segundo vale a pena. Que uma vida ordinária pode ser
extraordinária quando temos com quem compartilhar afetos, lágrimas e sorrisos.
Felipe é um livro incompleto. Pouquíssimas páginas escritas e inúmeras
outras com rabiscos nebulosos que nunca tomarão forma.
Não é dor, nem saudade ou melancolia, é nostalgia de uma vida não vivida.
Sua vida toda está em meu coração.
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