Cincopes

on 09 abril 2021

POLÍTICA - MITO E PROBLEMA

Os militares eram o poder moderador no Brasil imperial. Sua participação na vida política brasileira como influenciador com sua visão militar da política se consolidou com um golpe, a Proclamação da República.

No império, os militares foram usados para consolidação do território, sufocando movimentos populares, separatistas ou apenas de luta por menos impostos, melhores condições de vida, por terra e outros. Não é por nada que Duque de Caxias é o seu patrono em detrimento do Marechal Osório. Caxias era político, Osório era um militar.

A história do Brasil sem a intervenção militar seria outra, não sei se melhor ou pior, mas mais estável. Desde a Proclamação da República, todos os sobressaltos na vida política brasileira têm os militares no foco da instabilidade para se apresentarem como força de estabilização.

Essa mentalidade, o Exército de Caxias, atravessou o tempo e os militares de hoje, não pensam diferente. É pensamento dominante intramuros, seja dos quarteis ou dos estabelecimentos de ensino, de que são patriotas diferenciados, conhecem e sabem o que é melhor para o Brasil.

A estrutura capilarizada com presença em inúmeros municípios (CMA, OMs, CFOR, Col Mil, TG, EsIM, Circunscrição Mil) faz parte dessa estratégia. A projeção de poder interna é feita via "Mão Amiga" e GLO, como se fosse o único mensageiro da paz. O ex-comandante, general Villas Boas, confessa crimes em seu livro consciente de sua imunidade e impunidade. O reflexo são as vivandeiras, com apoio explícito do presidente, pedindo a “intervenção militar constitucional”, seja lá o que isso quer dizer.

Essa doutrina ganhou força pós Segunda Guerra com a criação da Escola Superior de Guerra (ESG), onde “se pensa o futuro do Brasil”, teoricamente. Esse “pensar” tem um viés ideológico, com pensamento único, fora do contexto democrático e sociológico. A própria avaliação dos candidatos passa pela análise do perfil ideológico ou filosófico, mesmo constando na aba Institucional de seu sítio na web que “Seus trabalhos são de natureza exclusivamente acadêmica, sendo um foro democrático e aberto ao livre debate” (grifo meu).

Em 2006, lembro que o comandante da Escola, general José Benedito Barros Moreira, sofreu forte e agressivo patrulhamento ao convidar o líder do MST, João Pedro Stédile para uma palestra sobre Reforma Agrária e Meio Ambiente. Ninguém ficou preocupado quanto ao outro palestrante convidado para falar sobre o mesmo assunto, o filósofo conservador Denis Rosenfeldt, com muito menos a dizer sobre o tema.

Obviamente que pensar o Brasil sem entender TODOS os brasileiros é um erro. Minha opinião é de que está na hora de pensar uma ESG sem partido, sem ideologia, digital, sem fronteiras.

Desde 2008, os militares vêm se reorganizando politicamente. Em 2014, engoliram o orgulho ferido pelo ex-subordinado indisciplinado e adotaram o capitão como candidato à presidência da República. Os militares nunca engoliram Bolsonaro, tanto que só depois de eleito, em 2018, fizeram a entrega do certificado de conclusão da ESAO. Se fosse diferente, teriam entregue nas centenas de solenidades militares ocorridas nos 28 anos de mandato parlamentar em que ele jamais apresentou projeto na defesa ou em apoio às Forças Armadas. Sua preocupação era expor sua personagem histriônica enquanto se mobilizava no baixo clero montando sua estrutura de clã, elegendo filhos e arrumando empregos públicos para esposa, ex-esposas, tios, sogros, sogras, cunhados, sobrinhos e amigos.

O impeachment, em 2016, foi o sinal para a movimentação explícita do Exército. O MDB e Temer estavam envolvidos profundamente na corrupção em investigação e sob a proteção dos militares, entregaram os anéis e preservaram os dedos.  Conseguiram com o refém Temer subordinar toda a estrutura de informações ao GSI e afasta-la da SAE (Secretaria de Assuntos Estratégicos). Iniciou a campanha ostensiva de candidatos militares em todo o país, com o comando abrindo os portões para a entrada da política nos quartéis. Em alguns casos, até com pressão sobre subordinados e apoio logístico.

Com a vitória de Bolsonaro, parecia que tudo estava sob controle com os militares assumindo os principais postos. Mas a realidade mostrou que não teriam as facilidades de uma gestão de organização militar, onde você tem o controle de todos os elementos, internos e externos.

Na gestão pública e na política, o caso é outro, ainda mais se surge no contexto uma pandemia de proporções mundiais. Não basta o “cobre e alinha” militar, é preciso decidir, negociar, ceder, avançar e recuar. No mundo real, não há apenas preto e branco e nem tudo está previsto em regulamentos e manuais de campanha. E a visão de futuro não pode ser ideológica, limitada em profundidade e horizonte.

O governo Bolsonaro é o mais ideológico da história, supera inclusive a ditadura iniciada em 1964. Hoje, não há diferença de pensamento entre os militares e os radicais seguidores de Olavo de Carvalho. O governo é monolítico, se fortalecendo com os choques internos, como é da natureza do capitão.

Mas, sempre há um mas, Bolsonaro se transformou num problema. Além de se tornar vítima de sua postura e atitudes, hoje é o maior inimigo de seu governo e pressentiu que as cabeças militares que criaram o mito iam abandoná-lo a própria sorte para permanecerem no poder, cumprindo o plano desenhado em 2008.

A criatura resolveu enfrentar os criadores.

Ele sabe que não governa só com o Centrão. Falta capacidade, inteligência, competência e confiança do poder (mercado e empresariado) nesse grupo para tocar uma máquina do tamanho do governo federal. Não que os militares tenham essa competência, mas eles têm a confiança de quem tem o real poder. Uma divisão clássica que já assistimos em 1964. Com eles no governo, o poder não troca de mãos e segue o baile.

A mudança do Ministro da Defesa é apenas um pequeno desajuste entre as partes sobre a forma, não sobre o conteúdo. Tanto que as substituições foram discutidas na imprensa por dias, mas a acomodação foi rápida e os nomes foram trocados em 24 horas. Ao fazer o anúncio da mudança coletiva, já estava decidido, sai um general, entra outro. Se o Exército realmente estivesse incomodado e preocupado pela política ter entrado nos quarteis, bastaria o comandante mandar retornar aos quarteis todos os militares da ativa que estão ocupando postos de responsabilidade de civis. Cobraria da reserva a exclusão de posto ou graduação ao se manifestarem politicamente, mesmo aqueles com mandato, assim como o uso do nome, posto, uniformes e distintivos militares em páginas pessoais na internet e nos bem cortados ternos. Tudo isso é ilegalidade de acordo com a Constituição Federal, e transgressão disciplinar prevista no RDE (Regulamento Disciplinar do Exército), Estatuto dos Militares (Lei 6.880/80) e na Lei 7.524/86. Isso inclui as manifestações políticas do Clube Militar. Hierarquia e disciplina estão ameaçadas pelo mau exemplo de seus comandantes.

A limitada visão estratégica (avança por lanço e ação de choque), grande capacidade de sobreviver no submundo político (ninguém sobrevive na selva de Brasília por 28 anos sem conhecer a fundo os caminhos e quem resolve), megalomaníaco com o sonho de fazer seus herdeiros reinarem na política ou em nichos específicos, fez com que Bolsonaro se tornasse a única opção do grupo para cumprir o papel de candidato em 2018.

Será que passou pela cabeça dos mentores dessa estratégia que o oficial intermediário indisciplinado, que odeia as FFAA (prefere PMs, milícias e atiradores), ofendeu seus pares e oficiais generais, menosprezou a instituição, usou os militares como catapulta para seus sonhos políticos, falastrão, verborrágico, mal educado, mitômano, com evidentes sinais de sociopatia, sem preparo ou polimento para o cargo, chefe de um clã de estado, seria facilmente dominado tendo poder como chefe supremo das FFAA? Estrutura militar de informações, assessores parlamentares e a simples leitura dos jornais seriam suficientes para ver que a canoa era furada.

O Exército vai pagar um preço muito alto pelos sonhos pessoais e falta de espírito público de alguns de seus membros, porque o mito se transformou num problema não só para eles, mas para todos os brasileiros.

A safra de oficiais dos anos 70 tenta repetir a turma de 20/30. O Brasil espera que a sociedade esteja mais lúcida.