Cincopes

on 22 abril 2024

PROSA - INESQUECÍVEL

Adoro caminhar a esmo, perdido em pensamentos, buscando soluções, analisando pessoas, admirando a paisagem, surpreendido pelo novo... despreocupadamente ando quando, num relance, vislumbro uma imagem de minha adolescência.

Meu coração dispara, esfrego os olhos, pisco rapidamente, suspiro fundo e ela se vai, desvanece, some na multidão.

Fiquei um longo tempo no mesmo lugar, o olhar percorrendo o entorno, o sobressalto por cada figura que saia pelas portas, a esperança fustigando meu coração.

Sua morenice linda, o sorriso generoso, o brilho de seus olhos negros, o cabelo curto e o andar suave e estudado sempre me cativaram. O primeiro olhar apaixonado, o primeiro toque sutil, o aperto da mão gelada, suada e trêmula, o primeiro suspiro de amor.

O ponto de partida foi uma troca rápida de olhar durante o recreio que se transformou numa conversa na fila da cantina com um casual roçar dos braços.

O encanto foi quebrado pelo som estridente da sineta, era hora de cada um seguir seu destino.

Eu, 14 anos, um adolescente ginasial. Ela, 16 anos, uma mocinha do clássico.

Dois anos era uma eternidade. Ela ia às festas que eu não podia, sua turma estava para os 18 anos e eu ainda não me afastara da dos 12. Ela não precisava da autorização para excursões, eu ainda tinha uma caderneta. Eu brigando com fórmulas e ela voando em francês e inglês.

A diferença de idade era um obstáculo que um dia, sem mais nem porque, superamos.

Todos os dias, na porta da escola, meu coração quase saía pela boca com a aproximação do Simca preto e branco. Ela descia como uma fada com sua saia xadrez, camisa branca com o distintivo do colégio, meias três-quartos brancas e o sapatinho preto. Nos braços, uma pasta cinza com elástico e uma bolsa marrom a tiracolo. Só essa lembrança já dispara meu coração.

Eu ia ao seu encontro e caminhava a seu lado. Falávamos pouco e os três lances de escada e o longo corredor eram percorridos lentamente enquanto os ponteiros do relógio giravam rápido.

No recreio, conversávamos sob o enorme abacateiro, rindo e tentando não dar bandeira, mesmo o pessoal estranhando eu me misturar com a sua turma e ela, às vezes, se juntar à minha.

Tudo transbordou durante uma feira do livro realizada na praça defronte ao colégio. No sábado, aconteceu uma quermesse típica de cidade do interior.

Não foi difícil encontra-la entre a multidão. Vestia uma minissaia tomara- que- caia amarela que valorizava suas lindas pernas, um pequeno lenço no pescoço e uma fita vermelha no cabelo, combinando com o batom que realçava seus lindos lábios. Discretamente, acenou e flutuei até ela. Hipnotizado por seu sorriso, mal notei sua mão pegar a minha e me arrastar para a pista de dança improvisada na quadra de basquete.

Nossa primeira dança, rosto colado, sentindo o calor e tremor inéditos de nossos corpos.

Como mágica, no momento em que sua mão tocou minha nuca, começou a música que embalaria meus sonhos românticos por anos, F Comme Femme, trilha do famoso clássico do cinema, Um Homem Uma Mulher. E ela traduzia a letra em sussurros quentes em meu ouvido e a última estrofe até hoje define nós dois naquele momento.

“Na hora da verdade

Havia uma mulher e uma criança,

Aquele menino em que eu me convertera

Contra a vida, contra o tempo.

Estou encolhido dentro de minha alma

e compreendi que ela era mulher”.

Bailamos em silêncio, apoiou seu rosto candidamente em meu ombro e sua mão apertou a minha com firmeza. Numa sequência de passos, foi o despertar do desejo e o primeiro beijo, tímido, inexperiente, furtivo. Entorpecido, quase ouvia nossos sentimentos.

Desse dia em diante, não importava mais as matinês para ver Brigite Bardot, Sophia Loren, Anita Eckberg ou Claudia Cardinale. Eu tinha minha estrela, minha musa, minha deusa!

Foi uma época de devaneios, bilhetes, imaginações, surpresas, iniciações e atos apaixonados. No final do ano, seu pai mudou de cidade e ela se foi. Trocamos algumas cartas, mas a distância foi cruel e nunca mais no vimos.

Restou a lembrança de um amor adolescente com as cores da paixão.

Por instantes, aquela lembrança me rejuvenesceu e meus lábios se abriram num sorriso.

Como a sineta no recreio, o sino da catedral avisou que eu deveria seguir meu destino.

Saudades da Inês, e vale a pieguice: inesquecível!